As fraudes e irregularidades no DPVAT (Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre) – o seguro obrigatório para veículos automotores que deve ser pago todo ano pelos proprietários– custaram pelo menos R$ 2,1 bilhões aos cofres do fundo em dez anos, de 2005 a 2015.
Ao todo, no período em questão, foram pagos ao menos R$ 1,7 bilhão em indenizações indevidas ou acima do valor permitido, além de outros R$ 440 milhões em gastos administrativos irregulares da Seguradora Líder –consórcio formado por seguradoras e que é responsável pelo DPVAT. Os problemas podiam estar causando o aumento do preço do seguro.
As conclusões são de auditorias nas contas do DPVAT feitas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) desde antes de uma operação da PF deflagrada três anos atrás, que chegou a prender 39 suspeitos e transformou em réus 41 pessoas (entre investigadores e delegados, policiais militares, advogados, médicos, fisioterapeutas e empresários) em processos criminais. As investigações da PF continuam e ainda não há ninguém condenado no esquema.
Após a deflagração da Operação Tempo de Despertar da PF, o número de indenizações pagas pelo DPVAT caiu 33,4% em 2016 em relação ao ano anterior. Com isso, a renovação do seguro obrigatório ficou mais barata a partir de 2017. Do ano passado em relação a 2016, a queda no número de indenizações pagas foi de 12%.
Em decisão colegiada proferida em janeiro, o TCU determinou a continuidade e o aprofundamento das auditorias, para tentar descobrir se há mais envolvidos no esquema, o porquê de as fraudes não terem sido percebidas antes e como instituir mecanismos a fim de evitá-las.
Uma pessoa da PF ligada à investigação, que conversou com a reportagem sob a condição de anonimato, aponta que existe a suspeita de as fraudes continuarem até hoje, mesmo depois da operação e da prisão de suspeitos no esquema, e que os desvios podem passar de R$ 5 bilhões.
"Ponta do iceberg"
"O que foi apurado até agora é só a ponta do iceberg", afirma o policial que não tem autorização da PF para falar sobre o caso. A continuação na devassa das contas vai atingir a estrutura da Susep (Superintendência de Seguros Privados), órgão do governo federal responsável por fiscalizar e regular as seguradoras no país. Oficialmente, a PF informa por meio de sua assessoria de imprensa que não comenta investigações em curso.
Outra coisa que chama a atenção do TCU é o modelo de negócio da Seguradora Líder, um consórcio de 79 seguradoras que assumiu a gestão do DPVAT em 2008. A Líder fica com 2% do valor de todas as indenizações pagas. Assim, quanto mais indenizações conceder, mais a seguradora ganha.
O montante gasto com advogados para defender a Líder na Justiça, de R$ 946 milhões, e o "baixo índice de êxito" nas ações também causou reprimenda do órgão de controle. De acordo com o TCU, não há cobrança de sucesso nem parâmetros nestas causas.
Em 2018, o DPVAT custa de R$ 63,69 a R$ 246,23, dependendo da categoria do veículo, e deve ser pago com a primeira parcela do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) ou no licenciamento. O valor da indenização é de R$ 13.500 no caso de morte ou invalidez permanente, variando conforme o grau da invalidez, e de até R$ 2.700 em reembolso de despesas médicas e hospitalares comprovadas.
Do total arrecadado, 45% é enviado ao FNS (Fundo Nacional de Saúde) para o SUS (Sistema Único de Saúde), para o pagamento de despesas em hospitais públicos, e 5%, ao Denatran (Departamento Nacional de Trânsito). O restante é reservado para provisões de indenizações e gastos administrativos.
Caiu do cavalo
Os tipos de fraude mais comuns envolvem o pedido de indenização para quem não teria direito a ela ou em valor superior ao que seria correto. Os esquemas costumam envolver policiais, advogados e peritos, além da vítima do suposto acidente a ser indenizado.
As fraudes acontecem aos milhares em todo o país. Em 2017, a Seguradora Líder flagrou 17.550 pedidos de indenização irregulares e evitou perdas de R$ 222,9 milhões em fraudes, afirma sua assessoria de imprensa.
Na investigação da PF, há indenizações pagas para pessoas que se acidentaram a cavalo ou de bicicleta e, portanto, não teriam direito ao benefício. Em outros, advogados dão entrada em pedidos de indenização sem o conhecimento das supostas vítimas e ficam com todo o dinheiro.
Em um caso emblemático, um policial civil na corporação havia 18 anos preso pela PF é acusado de cobrar R$ 100 por boletim de ocorrência fraudulento que registrava. Em um ano, ele chegou a registrar mais de 6.000 ocorrências de trânsito com vítimas. Ele foi solto e responde ao processo em liberdade.
Em outra ocorrência que chamou a atenção da PF, um vereador de Rubelita, município mineiro de 7.772 habitantes de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), quebrou o tornozelo jogando bola em 2014. Apesar disso, com ajuda de golpistas registrou um boletim de ocorrência de acidente de moto e recebeu R$ 7.000 de indenização do DPVAT. Comprovada a fraude, os beneficiários devem devolver os valores recebidos.
CPI encerrada sem parecer nem relatório
Após a deflagração da Operação Tempo de Despertar, a Câmara dos Deputados instaurou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o assunto, em maio de 2016. O ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi afastado do mandato e da presidência da Casa um dia depois de autorizar a criação da comissão. Em setembro, a CPI foi encerrada sem emitir um parecer ou relatório.
O requerimento para abertura do procedimento foi de autoria da deputada federal Raquel Muniz (PSD-MG), que ficou nacionalmente conhecida ao citar seu marido e então prefeito de Montes Claros (MG), Ruy Muniz (PSB-MG), na votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT). Ao votar a favor do afastamento de Dilma a deputada afirmou que o marido era um exemplo para o país — ele viria a ser preso pela PF no dia seguinte sob suspeita de corrupção.
A operação sobre o DPVAT foi desencadeada a partir da PF em Montes Claros. Foi a mesma delegacia que, pouco mais de um ano depois, prendeu o prefeito da cidade e marido da deputada que solicitou a criação da CPI.
A comissão chegou a ser questionada no STF (Supremo Tribunal Federal) pela Líder sob o argumento de que serviria apenas para cobrança de propina por parte dos parlamentares. A PGR endossou o pedido para o encerramento, mas a CPI foi finalizada antes da decisão da corte suprema, pois não teve seu prazo de funcionamento renovado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
"Os trabalhos da CPI têm sido dificultados por forças ocultas e poderosas, existindo a sensação, por parte dos que subscrevem este manifesto, de que a conclusão dos trabalhos não atenderá aos reclames da sociedade brasileira", diz um texto assinado pelos integrantes da comissão pouco antes de ela ser encerrada.
Combate a fraudes é feito, dizem responsáveis
A Seguradora Líder afirma, por meio de sua assessoria de imprensa, que tem aprimorado seu sistema de gestão e de prevenção de fraudes desde antes da operação da PF e que o processo foi acentuado depois. A seguradora afirma que colabora com todas as auditorias e investigações.
"E é fundamental reforçar que a Seguradora Líder-DPVAT possui tolerância zero com a fraude e com a corrupção. Garantir que os benefícios sejam dados a quem realmente tem direito é a principal meta dessa companhia", diz a nota enviada à reportagem.
A Líder afirma que está atenta à atuação de grupos organizados para fraudar o DPVAT e que sempre comunica às autoridades responsáveis quando identifica algo suspeito. Ao todo, incluindo tentativas de fraude prevenidas, ações ganhas na Justiça e indenizações negadas por motivos técnicos, a economia chega a mais de R$ 994,1 milhões, diz a Líder.
"Os três últimos anos foram especialmente desafiadores, pois as fraudes no Seguro DPVAT, cometidas por agentes externos à Seguradora Líder, ensejaram investigações, questionamentos e apontamentos de diversas autoridades, entre as quais a Polícia Federal e o Ministério Público de Minas Gerais, na ‘Operação Tempo de Despertar’; a Câmara dos Deputados na CPI do DPVAT; e o TCU, em relatório especial sobre a atuação da Susep na fiscalização da operação do seguro obrigatório", diz a Líder.
"A Seguradora Líder iniciou ações administrativas em diversas áreas e setores", diz a resposta. Foi criado um portal da transparência, onde é possível acompanhar processos indenizatórios, fazer denúncias e tirar dúvidas sobre o seguro obrigatório.
Já a Susep informa que, em 2016, constituiu um grupo de trabalho para discutir ações de fiscalização em relação ao DPVAT, e que apresentou um plano de ação ao TCU para sanar problemas na supervisão do seguro obrigatório. "Como próximo passo, ainda no primeiro trimestre deste ano, a autarquia estabelecerá um grupo de trabalho formado por representantes da própria Susep, de entidades representativas do setor de seguros, entre outras, para debater um novo modelo para o seguro." (Auri Rebello – Uol Notícias)