Em janeiro deste ano, a Superintendência dos Seguros Privados – SUSEP, em razão do fim do consórcio de seguradoras que operavam o seguro DPVAT, ficando incumbida de manter a operação do seguro, promoveu a contratação direta, por inexigibilidade de licitação, da Caixa Econômica Federal – CAIXA, para a gestão do seguro DPVAT.
Com a dissolução do consórcio de seguradoras sob a administração da Seguradora Líder, esperava-se que o seguro DPVAT fosse alçado a uma situação de livre concorrência dentro do mercado segurador, o que não ocorreu.
A forma de contratação da CAIXA e a sua atual função de gestora e operadora do seguro DPVAT precisa ser revista. Fundamentais aspectos legais deixaram de ser observados. Gerir financeiramente o fundo DPVAT é uma atividade cabível de execução pela CAIXA, desde que contratada regulamente para a função, enquanto que, operar o seguro, com todas as atividades atreladas, principalmente a regulação e pagamento, é atividade que não compete a CAIXA.
No atual modelo aplicado há nítida extrapolação de competência e de atribuições de responsabilidade típica das seguradoras.
A contratação por licitação decorre de exigência constitucional prevista no art. 37, XXI da Lei Maior. A inexigibilidade de licitação que originou o contrato administrativo nº 02/2021 firmado entre a SUSEP e CAIXA está fundamentada na norma licitatória, art. 25, II da Lei nº 8.666/93, cujo implicação, por se tratar de exceção à regra de licitar, impõe pressupostos para o ato, exigindo a presença de singularidade e notória especialização (leia-se intelectual) para a execução do objeto, que gerem uma inviabilidade de competição na hipótese da licitação.
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(…)
II – I – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
§ 1º Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
No caso, dando forma à base legal utilizada para justificar a contratação por inexigibilidade, é como se o atendimento da necessidade da SUSEP, de operação do DPVAT, só pudesse ser realizada pela CAIXA.
Entretanto, a CAIXA não detém natureza singular e notória especialização para justificar a sua contratação sem licitação para exercer a operação do DPVAT, atividade que nunca desempenhou.
Além do vício na origem da contratação, a operação do seguro DPVAT pela CAIXA extravasa a previsão da Lei nº 6.194/1974, que preceitua em seus artigos 6º e 7º que compete às seguradoras promover o pagamento (precedido da necessária regulação dos sinistros) das indenizações decorrentes do seguro DPVAT. A CAIXA, desprovida da competência legal para operar o DPVAT, está a exercer atividade que não lhe compete, ou seja, a regulação de sinistros.
Assim preceitua a norma:
Art. 6º No caso de ocorrência do sinistro do qual participem dois ou mais veículos, a indenização será paga pela sociedade seguradora do respectivo veículo em que cada pessoa vitimada era transportada.
(…)
Art. 7o A indenização por pessoa vitimada por veículo não identificado, com seguradora não identificada, seguro não realizado ou vencido, será paga nos mesmos valores, condições e prazos dos demais casos por um consórcio constituído, obrigatoriamente, por todas as sociedades seguradoras que operem no seguro objeto desta lei.
A lei é clara ao dispor que compete as seguradoras, ou consórcio constituído por elas, a responsabilidade de pagamento das indenizações decorrentes do seguro DPVAT, o que passa, antes disso, pela necessidade de operar toda a regulação dos sinistros atrelados ao seguro.
O procedimento de regulação é atividade típica das seguradoras. A Lei nº 6.194/1974 se trata de norma federal sob pleno efeito, inexistindo a possibilidade de qualquer outra norma infralegal se sobrepor, principalmente Resoluções do CNSP e SUSEP.
Qualquer posição alternativa no sentido de tentar desvirtuar a finalidade do DPVAT, desconfigurando a sua natureza legal de seguro, para tratá-lo como um elemento de amparo e proteção social, sendo parte de políticas públicas de governo, contraria frontalmente a norma e a ordem legal.
A CAIXA, através de um correto procedimento administrativo de contratação que respeite as diretrizes da Lei 8.666/93, até pode assumir o papel de gestora fianceira do fundo DPVAT, mas não a operação do seguro, com a regulação dos sinistros e pagamento das indenizações, atribuição que, por força da Lei 6.194/1974, é de competência exclusiva das seguradoras.
As atribuições dos entes, sejam públicos ou privados, devem ser respeitadas em prol da manutenção funcional do sistema DPVAT.
Notícias veiculadas sobre a operação do seguro pela CAIXA apontam que os segurados estão enfrentando dificuldades para receberem as indenizações, com processos lentos que não finalizam e atraso nos pagamentos. Aliado à isso, há um vácuo a ser preenchido, pois uma expressiva massa de aproximadamente 34 milhões de brasileiros não possuem acesso a contas bancárias, que ficarão num limbo no caso de pagamentos via sistema bancário.
Estender conotação diversa ao seguro DPVAT, tirando-lhe sua finalidade legal de seguro privado, para tentar lhe transformar em política pública de proteção social é atentar contra a legalidade. É dar à norma contornos alternativos incabíveis dentro de um Estado Democrático de Direito baseado na livre iniciativa e concorrência, contribuindo para o enfraquecimento das relações de direito e a insegurança jurídica.
A própria Resolução CNSP Nº 400/2020, que em sua cláusula segunda autorizou a SUSEP a contratar instituição para a função do DPVAT, determina que os procedimentos de pagamento das indenizações devem seguir a Lei 6.194/1974, ou seja, com efeito, somente através das seguradoras.
É necessário que SUSEP e CAIXA, dentro do seu poder-dever de revisão dos atos de gestão e controle da legalidade, revejam o modelo de negócio para o DPVAT, estendendo ao seguro a sua devida finalidade legal, direcionando a operação para seguradoras, preservando as atribuições definidas em lei e harmonia jurídica de todo o sistema DPVAT.
A situação, em que pese o atoleiro legal, ainda comporta solução baseada no princípio da autotutela e correção dos atos administrativos, anulando-se as ilegalidades e dando-se novo rumo e modelagem ao papel da CAIXA e das seguradoras frente ao seguro DPVAT, de forma a resguardar a ordem legal e as instituições democráticas de direto, a bem do interesse público e do crescimento sustentável do País.
* Artigo de autoria de Mauro Pizzolatto, advogado e especialista em Direito Público.